1 de fevereiro de 2015

Marina Moura Peixoto, Artista de Todos os Tempos


“Porque não há morte para aqueles que não são amados, mas há uma única e que dura sempre, para os que foram muito.” (Lúcio Cardoso, 1912 – 1968)

Prezados Amigo José Carlos Neves Lopes

“Era uma mulher à frente do seu tempo. Quando o movimento feminista sequer engatinhava no País, saiu em defesa da mulher na arte musical. Em dois artigos virulentos, mas sem jamais perder a ternura, ambos publicados no ‘Diário de Notícias’, na década de 1950, ela passeia pela História lembrando as grandes compositoras que marcaram época. Fala do preconceito que cercava então o considerado sexo frágil, alfinetando, com firmeza, em trecho de seu artigo: ‘É voz geral que não temos queda para a composição, motivo porque dificilmente os programas musicais aludem a mulher criadora’.”
“Marina Moura Peixoto (1917 – 1975), pianista carioca que encantou o Brasil, relembra o ‘desprezo público’ que sempre cercou as mulheres compositoras, destacando a inglesa Ethel Smyth entre aquelas pioneiras que sempre escreveram música toda a vida, lutando por conseguir para as criadoras musicais um lugar ao sol, equiparando-a, no particular, ao sexo masculino.”
“Dotada de cultura e competência musical invulgar – aos três anos e meio já surpreendia plateias dedilhando as primeiras notas musicais – Marina vasculhou livros para localizar em Santa Cecília, há quase dois mil anos, entre as primeiras compositoras de todo o mundo.”
“ – Dizem que só em música a Deus ela se dirigia... E se nenhum documento comprobatório tenha sido exibido em favor dessa atividade, é incontestável que dela fizeram a padroeira da música – conta no primeiro artigo sobre a mulher na composição musical, em 22 de setembro de 1957, no ‘Diário de Notícias’.”
“Mulheres de todos os continentes, que encontraram na composição de músicas a expressão de sua arte, são também citadas por Marina Moura Peixoto. No século 16, localiza duas madrigalistas eméritas. Em Veneza, na Itália, Maddalena Mezari, chamada Casulana, e em Ferrara, Vittoria Alleoti, freira da Ordem de São Vito. No século 17, discorre Marina, ainda na Itália, avultam Francesca Caccini, Isabella Leonarda, Maria Francesca Nascimbeni, Barbara Strozzi e Maria Caterina Galegari. Francesca Caccini, esclarece Marina no artigo, pertencia, como o pai, à Camerata Fiorentina – ela também era cravista, alaúdista, guitarrista, cantora e compositora,  deixando-nos cantatas sacras e seculares, dois bailados e uma ópera.”
“Marina Moura Peixoto percorre séculos, países, sempre em busca de mulheres que abrilhantaram a composição musical. Num passeio pela França, localiza quase meia centena de compositoras. Pela escassez de espaço, centraliza-se em Élisabeth Jacquet de la Guerre, protegida de Madame de Montespan e muito elogiada na corte de Luís 14. Harpista e improvisadora, escreveu uma ópera, sonatas, cantatas, bailado, pastorais. Também fala, nessa mesma época, de Amélie Julie Candeille, atriz, cantora, pianista e harpista, que também escreveu duas óperas – a mais notável é ‘A Bela Arrendatária’. Ela foca a atenção, porém, em nível internacional, em Lili Boulanger, a primeira mulher a abiscoitar o Grand Prix de Rome de Música, em 1913, a mais importante premiação da época nessa área – ela dividiu o primeiro lugar com Claude Delvincourt, um compositor, fato até hoje inédito.”
“É Marina quem conta: - Com a cantata ‘Fausto e Helena’, Lili, aos 19 anos, demonstrou que a mulher podia emular-se ao homem na arte de compor. Seu organismo frágil, doentio, levou-a depressa à morte, em 1918. É pena, pois dizem os entendidos, nunca houve mulher de igual talento criador em música – relata.”
“Depois de vasculhar, em longa pesquisa, nomes femininos de destaque na composição musical também na Alemanha, Inglaterra, Áustria e Rússia, ela centra sua atenção final às mulheres da América Latina que engrandeceram o continente com sua arte. Fala, então, de Carmela Mackenna e Maria Luisa Sepúlveda, no Chile; de Célia Torra, Irma Williams e Isabel Aretz-Thiels, na Argentina. Em Cuba, refere-se a Virginia Fleites, Gisela Hernandez e Esther Rodrigues – as três pertenciam ao Grupo de Renovação Musical. Na então República do Salvador, lembra Maria de Barata. E agora, já no Brasil, dá ênfase a Helza Cameu – ‘Suíte opus 9’, ‘Quadro Sinfônico’, além do poema sinfônico ‘Terra de Sol’. Fala também de Dinorá de Carvalho – ‘Fantasia para Piano e Orquestra’ – e de Eunice Catunda – ópera para títeres ‘Negrinhos do Pastoreio’. E cita ainda, sempre lembrando ser impossível enumerar todas as outras grandes compositoras, Nadile de Barros  Marcarian, que compôs peças para piano, violino e violoncelo, além de poema sinfônico para piano e orquestra, e Cantata para solos, coros e orquestras.”
“Conclusivamente, ao término do artigo, ela vaticina: - Exceto manifesta má vontade, não dá mais para afiançar que a mulher, além de intérprete genial, não ultrapassa em música o papel secundário de inspiradora de obras-primas. Ela é também uma voraz criadora, afirma a convicta Marina Moura Peixoto.”
“Os artigos de Marina no ‘Diário de Notícias’ valeram calorosos elogios dos críticos da época. Um dos mais destacados, Octavio Bevilacqua, em ‘O Globo na Música’, em 3 de outubro de 1957, após ressaltar ‘o valor musicológico’ de Marina Moura Peixoto, assim se referiu aos artigos que ela publicara no ’Diário de Notícias’: ‘Agora, porém, sua erudição sai a campo na defesa, ou melhor, contra preconceitos que consideram a mulher pouco apta para a criação musical... De tanto conjeturar o assunto, Marina pôs-se em campo e apresenta trabalho de tipo e vulto que não conhecemos outro sobre o caso’.”
“No coração inquieto e ardente de Marina, que encerrou a carreira precocemente iniciada aos três anos e meio de idade, depois do casamento com o médico, radialista e jornalista Perilo Galvão Peixoto - em 1945 - e o nascimento dos filhos Fernando José -1946 - e Teresa Cristina - 1951-, ainda havia espaço para abrigar e proteger os amigos. Na Rádio Ministério da Educação e Cultura desde 1942 - onde comandou os programas ‘Atendendo Aos Ouvintes’, ‘Em Resposta A Sua Carta’, ‘Música de Todos os Tempos’, ‘Música, Apenas Música’ e ‘Quartetos’ -, foi a principal testemunha de defesa, no início dos anos de chumbo da ditadura militar de 1964, do então jovem Hermínio Bello de Carvalho, produtor musical e compositor, e da professora Maria Yedda Leite Linhares, diretora da emissora havia apenas oito meses.”
“Ambos foram acusados de subversivos, quando, em abril de 1964,  Eremildo Luiz Vianna, um obscuro professor da Faculdade Nacional de Filosofia, acompanhado de asseclas - estudantes e truculentos policiais - tomou de assalto a Rádio MEC, de arma em punho. Como primeira medida, proibiu a execução de músicas de autores russos na emissora. A aguerrida Marina foi em defesa dos colegas. E compareceu diversas vezes - sempre acompanhada do marido Perilo Galvão Peixoto - ao DOPS, o departamento de ordem política da ditadura militar que então se implantava no País. Hermínio Bello de Carvalho e Maria Yedda Linhares acabaram absolvidos por falta de provas – para decepção de alguns radialistas da MEC francamente favoráveis ao golpe e ao regime de exceção (os que sobreviveram ao tempo posam hoje de bons velhinhos, agrupados numa ONG).”
“A paixão pelo piano sempre calou forte no peito de Marina. No final dos anos 1960, convidada, retorna ao teclado, agora acompanhando as cantoras líricas Leda Coelho de Freitas, Maria de Lourdes Cruz Lopes e Alma Cunha de Miranda, recitalistas da emissora. Foi uma tarefa hercúlea. O longo período de inatividade – cerca de 30 anos – provocava fortes dores nos dedos e punhos da pianista. À noite, ela colocava as mãos em uma bacia com água morna para aliviar as dores. Os filhos Fernando José, este em casa, e Teresa Cristina, nos estúdios da Rádio MEC, se revezavam na tarefa de virar as páginas da partitura enquanto  a mãe tocava.”
“Marina tocava e encantava. Até que, em 26 de fevereiro de 1975, tocada pela morte, uma sinfonia de dor e saudade se abateu sobre todos - uma legião de fãs que amealhou ao longo de sua existência, onde a arte era sua marca registrada. Viveu com intensidade e desassombro tudo o que lhe ditava o coração de mulher adiante do seu tempo. Marina Moura Peixoto, uma mulher de todos os tempos, uma artista de todos nós.”
 [Texto de Antonio Castigliola (1951 – 2010) publicado em sua FOLHA DA PRAIA nº 2266, em 13 de março de 2005, por ocasião dos 30 anos de falecimento da pianista Marina Moura Peixoto]


Na trilha sonora, Marina Moura Peixoto, em gravações raras feitas em 78 RPM na década de 1940, em disco de acetato, interpreta “Carrossel” e “Entardecer no Bosque”.

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